Por Maria Luís Jorge Mendes
Depois de uma troca de mensagens com uma amiga querida, surgiu a ideia de relatar a nossa vivência nos antípodas.
Ao começar a escrever lembrei-me de um pequeno livro de excelente humor do grande Lawrence Durrel, Antrobus Complete (1985) acerca das atribulações da vida diplomática. Nele inspirada e na máxima “alegria é a verdade e a verdade é alegria”, aqui fica o testemunho.
Depois de termos arrastado os nossos tarecos mundo fora ao longo de 20 anos, chega o momento em que nos informam termos direito a um contentor pequeno para levar os nossos objetos decorativos preferidos e artigos pessoais, para nos sentirmos em casa. Pela primeira vez, sentimos que iremos finalmente relaxar, pois a logística estará assegurada e não teremos que procurar alojamento ou preocuparmo-nos em encontrar ajuda para as tarefas domésticas. Bom…, uma vez chegados ao posto a maioria de nós percebe que não é bem assim e que vamos ter que lutar, com unhas e dentes, para manter a dignidade do nosso país.
Os primeiros meses são geralmente passados a fazer malabarismos entre a necessidade de receber e estabelecer contactos, com a organização da residência e o estabelecimento de novas rotinas. Mas depressa percebemos que num país do tamanho de um continente – e com acreditação em vários outros Estados da região – e onde o custo de vida é considerado dos mais elevados, teremos que ser infinitamente engenhosos num ambiente de forte contenção orçamental e de impossibilidade de contratação de pessoal.
Quando passado o primeiro ano, e tudo parece estar em velocidade de cruzeiro, ficamos sem cozinheira, pois o visto sob o qual se encontrava não pode ser revalidado. E quando o salário mínimo para um cozinheiro são 4000 dólares, acrescidos dos montantes relativos a seguro de saúde, contribuição para a segurança social, impostos e direito a 10 faltas por ano por razões de saúde, para além do gozo de 22 dias de férias, é natural que os responsáveis em Lisboa fiquem abismados. Além disso, o que fazer quando o jardineiro cobra 80 dólares por hora, e quando se paga 150 dólares por 3 horas de serviço de mesa?
Depressa se encontra a solução e nos tornamos astutos: despede-se o jardineiro; contrata-se alguém para a cozinha, sem experiência mas com visto de residente, a quem se possa pagar o montante estipulado pela DRH; rezamos para que os criados de mesa não tropecem nos degraus e assim não podermos ser acusados de incúria à luz da lei da responsabilidade civil, e confiamos que tudo vai correr bem…
Tornamo-nos polivalentes e detentores do dom da ubiquidade: jardinamos, somos mordomo, governanta, criados de fora e de dentro, barman e o mais que seja. Abrimos a porta para receber os convidados, ficamos com o puxador da porta na mão, entretanto caído e, sem preocupações, escondemo-lo atrás das costas, sorrimos e continuamos a cumprimentar. Levantamo-nos pelo menos dez vezes da mesa onde temos 16 convidados sentados para ir controlar a cozinha. Empilhamos o nosso carro pessoal com plantas para o jardim; louça para funções ou livros ou quadros para exposições, pois a viatura oficial já deu a volta ao mundo em quilómetros, os travões não são de confiar, soluça e engasga-se: é o sinal perfeito para anunciar a presença portuguesa num qualquer evento. Desmontamos a casa e carregamos mobília para os sítios mais improváveis da residência de modo a organizar a receção do Dia de Portugal ou qualquer outro evento de maior magnitude. Escusado será dizer que quem o faz são os membros da família do Chefe de Missão: não somos pagos nem estamos abrangidos pela responsabilidade civil: somos apenas meros voluntários.
Caçamos cobras e aranhas nos jardins e telefonamos para a sociedade protetora dos animais para os virem buscar: são espécies protegidas, não as podemos matar, pelo que passamos uma manhã inteira a olhar para uma brown snake instalada no jardim como se fosse o nosso animal de estimação. No Inverno vestimos os nossos agasalhos da Nova Inglaterra para estar dentro de casa e no Verão suportamos o ambiente de sauna no piso superior. Quando pensamos na conta da eletricidade de quatro dígitos congelamos de imediato.
Mas apesar de ter que confessar a minha frustração com algumas das situações, termino como comecei: com a típica expressão australiana: “no worries, mate” (sem problemas, companheiro) e com a consolação de que estamos todos no mesmo barco, no serviço diplomático, por opção e decisão pessoais! Há os que não têm que se preocupar com 72 das mais mortíferas espécies animais do mundo e com algumas delas a passear pelo jardim… mas fica a memória inolvidável de um país maravilhoso e que pode ter sido acostado por navegadores portugueses, com gente das mais diversas origens, muito simpática e aberta, e ao qual, durante algum tempo, tivemos o privilégio de chamar lar!
MLJM